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Mudança cultural faz Escócia eleger o ‘Parlamento mais gay do mundo’

Por Katrin Bennhold, em Glasgow (Escócia) Mudança cultural faz Escócia eleger o 'Parlamento mais gay do mundo'

Mudança cultural faz Escócia eleger o 'Parlamento mais gay do mundo'

Foto: Paulo Nunes dos Santos/The New York Times

Escócia deixou de lado boa parte de seu tradicional conservadorismo social e abraçou com entusiasmo a diversidade na sexualidade.

Um popular tabloide chamou Patrick Harvie, o líder do Partido Verde Escocês, de “ameaça verde à família” quando ele concorreu ao Parlamento em 2003. Não por causa de sua política, mas por ele ser bissexual. Quando Ruth Davidson se tornou a primeira líder abertamente LGBT do Partido Conservador Escocês em 2011, ela foi rotulada de “a lésbica do kickboxing”.

Mas quando Kezia Dugdale, líder do Partido Trabalhista Escocês, se assumiu em abril, isso já nem era mais considerado notícia.

No espaço de uma geração, a Escócia deixou de lado boa parte de seu tradicional conservadorismo social e abraçou com entusiasmo a diversidade na sexualidade, um processo conduzido e reforçado por uma notável transformação em sua cultura política.

A homossexualidade era ilegal na Escócia até 1980 –na Inglaterra ela foi descriminalizada em 1967– e mesmo até recentemente, no ano de 2000, outdoors financiados por um milionário cristão em campanha para defender uma proibição contra menções à homossexualidade nas escolas faziam um apelo aos escoceses: “Protejam Nossas Crianças”.

Hoje, além dos líderes de três dos cinco maiores partidos políticos da Escócia, quatro ministros do governo escocês são abertamente gays, assim como o secretário de Estado para a Escócia no governo conservador britânico. O único representante eleito do Partido da Independência do Reino Unido (UKIP) na Escócia, de extrema-direita, também é gay.

Dos 129 membros do Parlamento Escocês, uma assembleia legislativa com ampla autonomia de Londres, 10 deles, ou quase 8%, se identificam como gays, lésbicas ou bissexuais, que até onde se sabe é a mais alta proporção conhecida para uma legislatura nacional em todo o mundo.

Mudança cultural faz Escócia eleger o 'Parlamento mais gay do mundo'

Foto: Paulo Nunes dos Santos/The New York Times

Andrew Brown com seu marido, Scott, em sua casa de praia em Elie, Escócia.

“A Escócia tem o Parlamento mais gay do mundo”, disse Andrew Reynolds, professor na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, que acompanha a representação política daqueles que se identificam publicamente como lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, ou LGBT, em todo o mundo. Em comparação, o Congresso americano, que representa uma população 60 vezes maior que a da Escócia, possui seis deputados eleitos e um senador que são abertamente gays, lésbicas ou bissexuais.

A transformação da Escócia é emblemática da mudança em muitos países ocidentais. Na quinta-feira, o governo britânico anunciou que perdoaria postumamente milhares de homens que no passado foram condenados por manter ou procurar relações com pessoas do mesmo sexo. (A Criminal Law Amendment Act de 1885, que tornou a homossexualidade ilegal, não mencionava mulheres –dizem que para evitar dar ideias a elas.)

Mas a mudança na Escócia também refletia tendências mais locais. O Parlamento da Escócia é jovem. Estabelecido em 1999 como parte de um acordo para ter mais poder delegado de Londres, ele deu uma plataforma a uma nova geração que cresceu com maior tolerância a respeito da sexualidade, tornou políticos mais acessíveis a grupos de interesse como ativistas LGBT por estar em Edimburgo, e injetou nova energia e orgulho na política escocesa. Em troca, os políticos que vivem fora do armário, que emergiram desde então, são grandes ativistas na luta pelos direitos LGBT.

“É uma grande mudança cultural”, disse Dugdale, que ficou noiva de sua namorada este verão. “Quando você diz que é gay, as pessoas dão de ombros. É quase como se dissessem ‘E daí?'”

A Escócia por muito tempo votou ideologicamente à esquerda da Inglaterra. Ela era um bastião do Partido Trabalhista antes de os eleitores escoceses mudarem para o Partido Nacional Escocês, ainda mais de esquerda, que hoje é a força política dominante. Mas uma mistura de calvinismo e de catolicismo significava que, sobre questões como aborto, divórcio e homossexualidade, a Escócia permaneceu mais conservadora que a Inglaterra durante décadas. Os nacionalistas escoceses já chegaram a ser conhecidos como os “Tartan Tories.”

Agora eles são o terceiro maior partido no Parlamento Britânico em Londres, e oito de seus 56 membros do Parlamento são abertamente lésbicas, gays ou bissexuais, uma proporção mais elevada que nos outros grandes partidos.

Mudança cultural faz Escócia eleger o 'Parlamento mais gay do mundo'

Foto: Paulo Nunes dos Santos/The New York Times

Seu diretor de campanha, Nathan Sparling, se apresenta de drag queen regularmente no G-A-Y, um dos mais famosos clubes gays de Londres. Na conferência anual do partido em Glasgow este mês, Sparling foi anfitrião de uma noite de karaokê vestido como seu alter ego, Nancy Clench.

“Tenho muito orgulho de ser o líder da bancada parlamentar mais gay do mundo”, declarou este mês Angus Robertson, o vice-líder (hétero) do Partido Nacional Escocês.

Davidson, dos Conservadores Escoceses, uma presbiteriana frequentadora de igreja que foi treinada para o Exército Reservista Britânico e já chegou a se descrever alegremente como uma “lésbica de cara quadrada e sapatos sem salto”, cortou seu cabelo ainda mais curto do que quando concorreu pela primeira vez. “Eu queria ter certeza de que as pessoas soubessem em quem estavam votando”, ela disse.

Desde então, cinco outros políticos do Partido Conservador Escocês se assumiram, sua companheira apareceu junto com ela em anúncios de campanha, e seu partido ultrapassou o Partido Trabalhista como principal partido de oposição na Escócia pela primeira vez. A igreja que ela frequenta mantém uma bandeira do arco-íris em seu altar.

“Nós avançamos muito em um breve espaço de tempo”, ela disse.

Ainda há mais coisas a serem feitas, diz Davidson e outros. As perseguições nas escolas continuam sendo um problema, especialmente para adolescentes trans. Crimes de ódio contra a comunidade LGBT aumentaram 20% no último ano, de acordo com a Stonewall Scotland, um grupo de ativismo LGBT, embora isso também reflita o fato de que as pessoas passaram a denunciar mais.

Mas as mudanças na política, nas políticas e na cultura foram impressionantes.

Uma das primeiras coisas que os legisladores fizeram após a criação do Parlamento Escocês em 1999 foi revogar a legislação que impedia as escolas de “promover a homossexualidade”, uma lei que havia de fato abafado qualquer discussão sobre questões LGBT nas escolas. Foi uma briga feia, com frases homofóbicas nas capas de jornais e outdoors com parte da imprensa alinhada à Igreja Católica Romana e Brian Souter, um rico empresário escocês, para resistir à revogação. Mas no final, eles perderam.

“Foi o último suspiro da Escócia conservadora”, disse David Torrance, um escritor e jornalista que também é um respeitado comentarista político, também gay.

Desde então, a Escócia legalizou uniões civis, adoção por pessoas LGBT e, em 2014, casamentos de mesmo sexo (conhecido na Escócia como “casamento igualitário” porque ele permite cerimônias totalmente neutras em termos de gênero). A lei escocesa para crimes de ódio, que inclui explicitamente o preconceito contra pessoas transexuais e intersexuais, é considerada uma das mais robustas do mundo. E agora o governo está considerando mudar sua lei de reconhecimento de gênero para incluir aqueles com uma identidade “não-binária”, que não seja nem masculina, nem feminina.

“É incrível: começamos uma conversa sobre uma sociedade sem gêneros”, disse Bob Orr, 66, que em 1982 abriu a primeira livraria LGBT de Edimburgo, a Lavander Menace.

Essa livraria fechou anos atrás, assim como vários bares LGBT. As pessoas LGBT estão frequentando cada vez mais lugares convencionais, disse Orr, e vários cantores em seu “coral LGBT” são héteros.

“As fronteiras estão caindo”, ele disse. “E essa sempre foi a intenção, que a sexualidade deixasse de importar.”

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